domingo, 27 de dezembro de 2020

Uma criança no Mundo do Trabalho II

    Era uma jovem bela, cabelos loiros, estatura mediana, vestia roupas modernas, diferentes de tudo o que se usava numa daquelas ilhas mais perdidas no meio do Oceano Atlântico. Filha de emigrantes açorianos, viera em férias com os seus progenitores à ilha. Quando a vêem, os rapazes ficam com "o olho em bico" quando ela passa na rua ou aparece (sempre protegida pelos pais) nas festividades da terra. Uma cara fresca, uma mente aberta, um corpo deslumbrante e uma educação irrepreensível.
    Não faltam concorrentes, quer seja para uma aventura sazonal, quer para coisa mais séria. ele, jovem tímido, encanta-se por tão rara beleza nestas paragens. Depois de umas trocas de olhares furtivos e cúmplices, ele declara-lhe a sua paixão. Ela aceita. Mas com mil cuidados! É que o pai dela é muito severo, e por isso é preciso ter muita cautela com o namorico! Entretanto as férias terminaram.
    Ela volta com os pais para o país que a viu crescer e onde estudou. Trocam cartas de amor. Ridículas. "Todas as cartas de amor são ridículas. /Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas". Era assim. Não havia telemóveis. Nem computadores com Internet. Sim, já havia telefones, mas telefonar era caro, sobretudo quando estamos tão distantes: um na ilha das Flores, Açores, e o outro (a), no Canadá. Assim, só o faziam de quando em vez. As cartas demoravam um mês a chegar, com as tais mensagens de amor eterno, e eram aguardadas com ansiedade. Como cheiravam bem aquelas folhas de papel com o perfume dela! E as fotografias que lhe mandava, lá da terra do frio, eram adoradas. Beijadas com mais paixão do que os crentes beijam as suas imagens adoradas! Mas, já estamos a filosofar de mais.
    Vamos fazer regressar essa jovem encantadora a Portugal. Como muitos dos nossos emigrantes na diáspora, ela regressa com a família à terra que a viu nascer. Foi certamente difícil a sua adaptação! Uma terra pequena onde toda a gente se conhece e sabe da vida de toda a gente, não é fácil! Entretanto, continuam o namoro, agora ainda mais abrasador. Ele tem de pedi-la em casamento, para poder namorar com ela. Foi exigência do pai dela. Não vá ele abusar da filha e depois abandoná-la. Não, isso é que não. Porque, numa terra pequena, fica-se marcado, marcada. Ele aceita a exigência, porque está perdidamente apaixonado por ela. Regressado do serviço militar obrigatório em Agosto, casam-se pelo civil nesse mesmo mês, e daí a dois meses pela Igreja (católica). Ele, com a especialidade militar de condutor, inicia outra profissão numa base militar francesa ali existente na altura. Assinava contratos de trabalho periódicos, não lhe oferecendo grandes perspectivas de futuro. Chega ainda a trabalhar também para uma empresa do continente ali representada, que se encarregou da primeira vedação do aeroporto da ilha das Flores, trabalho precário.
     Entretanto, abre-se um concurso para bombeiro profissional de aeroporto, para este mesmo aeroporto. São mais os candidatos que as candidaturas. Os requisitos já são exigentes para a época.         
Apesar de ter apenas a quarta-classe do ensino primário na altura, Francisco consegue passar nas provas de selecção. Depois, é submetido a um Curso Profissional de Bombeiro de Aeroporto, com a duração de três meses e atinge os objectivos no final do mesmo. Começa aqui uma longa carreira profissional e ao mesmo tempo uma odisseia... Depois deste primeiro curso, faz vários outros, quer no aeroporto das Flores quer em Lisboa. Depois disso, é convidado a desempenhar funções de chefia de equipas na sua profissão.
     Pelo meio disto, reinicia os seus estudos. Trabalha de dia e estuda à noite. Entretanto, compra um táxi, com o qual trabalha nas horas extra profissão. Ou seja, tem três profissões ao mesmo tempo: é bombeiro profissional de aeroporto, é taxista e é estudante. O esforço vale a pena! Concluiu o antigo 9º. ano de escolaridade. Mas, a sua persistência leva-o mais longe. Quer agora fazer o ensino secundário. Mas nas Flores ainda não existia esse nível de ensino. Assim, matricula-se na Escola Secundária da Horta, na ilha do Faial, como aluno externo. Escolhe um curso da área de letras, Humanidades ou Humanísticas. Solicita o Programa do Curso à Escola onde se matriculou. Encomenda os livros. Estuda sozinho. Partilha o tempo pelas três profissões.
     Entretanto, o ambiente de trabalho degrada-se, perturbando os estudos, que hão-de ficar em gestação. Dá-se a transferência de local de trabalho da ilha das Flores para o Porto, Norte de Portugal. É preciso um tempo para a adaptação à nova vida, trabalho de maior responsabilidade, exigência e rigor técnico, novos hábitos, novas rotinas, novos costumes, novas tradições, novas mentalidades e um clima de maiores amplitudes térmicas, isto para não falar do vocabulário que aqui se usa, que raia o boçal (grosseiro) geralmente usado por pessoas de baixo nível cultural e educacional. Passada essa fase, eis que um dia, ele volta a pensar nos estudos. Inscreve-se numa Escola Secundária, e volta aos estudos, sempre a trabalhar, agora em horário rotativo 24/24 horas. Faz turnos, ora diurnos, ora nocturnos. As aulas, essas são sempre à noite. Nos primeiros dois anos (10º/11º) tem-nas das sete da noite até à meia-noite, no 12º ano, das sete da noite às 11. Conclui com sucesso o Curso de Ciências Sociais e Humanas com média de 15 valores. Mas embora não necessite submete-se a exame nacional para acesso ao ensino superior e obtém nota de 11,5 valores. Agora está apto a entrar na Faculdade. Contudo, isso ficaria para mais tarde, pois tem fazer face às propinas da filha, que está, nessa altura, a fazer uma licenciatura.
     Todavia, com o decorrer do tempo, dá-se novas mudanças na sua vida. A empresa onde trabalha faz uma reestruturação no seu sector e "convida/empurra" os trabalhadores para uma "revogação de contrato de trabalho por mútuo acordo", mediante uma compensação monetária. Ele aceita. É uma nova fase da sua vida! Espera-o o desemprego (situação precária), com todas as consequências daí resultantes. Aguarda a idade necessária para requerer a pré-reforma, que só acontecerá aos 57 anos. E os estudos? Bem os estudos estão, no momento em que esta crónica está a ser escrita, estão em suspenso.

Base Francesa nas Flores

     Foi com imenso gosto e até alguma nostalgia que assisti à visualização dos vídeos "Opération Hortensia" na Biblioteca Pública...