Lá fora a chuva
quase não dá tréguas. O Inverno mal acabou de chegar. Os beirais da casa choram
copiosamente numa sintonia digna de um grande maestro, só se desviando a cada
rajada de vento que os faz ondular ora para um lado, ora para o outro. A grota
vai aumentando de volume, porque o ruído desenfreado do líquido a abrir caminho
em direcção à água-mãe tem pressa. Pela pequena vidraça embaciada das
janelinhas vejo os bardos que se agitam, se dobram e redobram num desespero
incessante. Na amassaria da cozinha, uma luz amarelo-doirada do candeeiro a
petróleo requebra-se a cada sopro de vento que desce pela chaminé abaixo. O forno está
aceso, o brasido resplandece num tom púrpura, e lá dentro, no tecto, a cor encarnada
indica-nos que está quase no ponto de rapar o brasido cá para a porta, para
então a mãe pôr o pão de milho a cozer. É claro que ela teve primeiro que
preparar a massa, amassá-la e deixá-la levedar, para então ser tendida antes de
ir para o forno. Num instante, um enorme clarão invadiu toda a casa, que ao
mesmo tempo estremeceu com o ribombar do trovão; até parece que o céu vai
desabar sobre as nossas cabeças, por isso, a mãe apressa-se a apelar à
misericórdia de Deus. Já há dias que nós fizemos o pedido das nossas ofertas ao Menino Jesus,
deixando uns papelinhos debaixo das nossas almofadas para que Ele os viesse
buscar durante a noite. Ah, esqueci-me de dizer-vos que hoje é véspera de
Natal, por isso nós, miúdos estamos muito agitados para recebermos as nossas
ofertas; sim, agora ainda são ofertas, porque isso de prendas há-de chamar-se
só mais lá para diante. E o presépio, ainda não falei dele! Pois, o presépio já está feito há uma
semana. Como
não podia deixar de ser, fomos apanhar o musgo e as leivas para lhe dar um tom
mais verdinho. Também não faltaram as figurinhas pequeninas em barro: o Menino
Jesus, a Virgem Maria, São José, os Reis Magos, o burrinho, a vaca e as ovelhas
(parece que daqui a alguns anos o Papa Bento XVI vai dizer num livro, sobre a
“Infância de Jesus”, que no Evangelho "não se fala de animais no lugar
onde Jesus nasceu", mas como bom pai, ainda vai tolerando que os animais
façam parte do nosso presépio este ano). Mas vamos ao que nos interessa, que
são as nossas ofertas. Afinal quando é que o Menino Jesus chega – perguntámos à
nossa mãe - e vocês estão a perguntar, porque é que é o Menino Jesus e não o Pai
Natal? A resposta é simples: isso é uma modernice que vocês adultos copiaram
dos americanos e que há-de vir daqui a alguns anos! Então, ela mesmo ocupada
com o pôr o pão no forno, aconselha-nos que nos deitemos, porque Ele só virá
depois da meia-noite. Assim foi. Mas quase que não conseguimos adormecer; a
sonhar acordados com as nossas ofertas. Apesar disso, lá adormecemos pelo meio
dos alvos e gélidos lençóis de algodão. Passado pouco tempo, a mãe veio
acordar-nos. O Menino Jesus já tinha vindo, e debaixo de cada uma das nossas
almofadas havia um pacotinho de papel pardo com figos passados e um
chocolatinho da marca Regina. Lá ficámos num frenesim, a dar dentadinhas
pequeninas no chocolatinho, para que ele durasse muito tempo, e fomos comendo
os figos passados, que sempre são pouco mais de meia dúzia. E daqui a pouco
vamos voltar a adormecer, mesmo que as ofertas não tenham sido aquelas que
tínhamos pedido ao Menino Jesus. É que o nosso Menino Jesus é pobre, por isso
não nos pôde dar aquilo que queríamos.
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