sexta-feira, 25 de abril de 2014

"Dizem que houve um Golpe de Estado em Lisboa"

   Há quarenta anos a notícia começou a circular numa mercearia conhecida na Rua do Porto, em Santa Cruz das Flores, pela manhã, ainda cheia de receios, trazida pelos mais velhos, que acabavam de a ouvir na rádio. Tinha eu dezassete anos nessa altura e estava a trabalhar como empregado de balcão na mercearia atrás referida. Atendendo a que o Antigo Regime protegia os patrões e que estes se faziam valer da total impunidade de que beneficiavam, quer quanto aos miseráveis salários que pagavam, quer quanto aos maus tratos que davam aos seus empregados; sobretudo aos mais novos, que foi o meu caso, em que fui tratado a pontapé e chapada na cara e a constantes humilhações em público, a notícia, embora pouco clara, provocou-me desde logo um sentimento de esperança, de alívio, de que a partir dali alguma coisa muito importante poderia mudar na minha vida; embora não percebesse nada de política (ainda hoje pouco percebo!) Nessa altura, em 25 de Abril de 1974, eu já trabalhava no referido comércio há 7 anos, uma vez que terminei a antiga 4ª Classe com pouco mais de 10 anos de idade. Até aí, a exploração do trabalho infantil era normal; e ainda se prolongou pela democracia durante alguns anos.
    Nas famílias mais pobres e com vários filhos, que era o caso da minha, os pais punham os filhos a trabalhar para ajudar ao sustento da família; embora esse não fosse o meu desejo - que era o de continuar os meus estudos - e de nada valeu que o então Director escolar, o senhor professor Victor Manuel Sequeira, ter vindo bater à porta dos meus pais a pedir-lhes que me deixassem continuar a estudar, porque a resposta foi a de que era necessário que eu trabalhasse para ajudar a família. Trabalhava então desde as oito horas da manhã (sem falta!), até às sete ou oito da noite, de segunda-feira a sábado até às sete ou oito horas da noite, conforme havia necessidade e conforme convinha ao patrão. Ia e vinha a pé para e do trabalho; no regresso, no Inverno, às escuras, pois não havia iluminação eléctrica, excepto na vila onde trabalhava; mal agasalhado; se chovesse a caminho do trabalho e ficasse molhado, a roupa secava no corpo ao longo da jornada de trabalho! Nessa altura não se falava em fim-de-semana; apenas se descansava ao domingo; excepto quando havia inventário (balanço como se dizia na altura), porque se o houvesse, éramos obrigados a trabalhar durante a semana também à noite, e ao domingo também; sem nada ganharmos com esse trabalho extraordinário! Em 25 de Abril de 1974, com sete anos de serviço e 18 de idade, eu ganhava menos de dois mil escudos por mês, ou seja, cerca de 10 euros; ou melhor, cerca de; € 0,40/dia (quarenta cêntimos por um dia de trabalho de sol a sol!) (Sempre era mais do que o primeiro salário: 150 escudos por mês; € 0,75/mês, ou seja 75 cêntimos por mês, o que dará cerca de € 0,025/dia, vinte e cinco cêntimos por um dia de trabalho; uma exorbitância! Nessa altura também não havia férias nem subsídio de férias; era trabalhar e calar! Não tínhamos sequer a coragem de reivindicar o que quer que fosse. Nesse ano (1974) os meus pais decidiram emigrar para os Estados Unidos da América a fim procurar uma vida melhor para a família; era o sonho americano!        Contudo, devido aos meus 18 anos e à instabilidade que se vivia no pós-25 de Abril, o governo de então não permitiu que eu acompanhasse a família (era um mancebo; idade para alistamento militar) tendo ficado atrás em casa de uns tios pobres e analfabetos, o tio José Toza a tia Maria Carmina Toza, que me acolheram como puderam, apesar das suas limitações, mas que lhes fiquei eternamente grato por isso.
    Um mês após a Revolução dos Cravos, em 26 de Maio de 1974 foi decretado o primeiro salário mínimo nacional de 3.300$00 por mês, ou seja, € 16,50 Contudo, devido à total impunidade com que ainda beneficiavam os patrões, o meu salário só veio a ser aumentado para esse valor, um ano depois, em 1975; sem qualquer direito a retroactivos! Olhando para o passado de há 40 anos, o país está muito melhor: posso aqui ou em qualquer lugar exprimir a minha opinião sem receio da PIDE/DGS, posso criticar o Governo; há mais igualdade social; a saúde melhorou, (a taxa de mortalidade infantil diminuiu), e isso reflectiu-se no aumento da idade média da esperança de vida, tanto para o homem como para a mulher; o ensino melhorou, a taxa de analfabetismo em Portugal passou de 18,6% em 1981 para 5,2% em 2011 (Fonte: "PORDATA), a escolaridade obrigatória passou de 4 para 12 anos, o número de licenciados aumentou; passou a ser proibido aos maridos abrirem a correspondência da mulheres e também de terem que dar autorização a estas quando elas se quisessem ausentar para o estrangeiro, entre muitos outros direitos sociais que seria exaustivo aqui relatar. Porém, se por um lado a vida dos Portugueses melhorou substancialmente, por outro, assiste-se hoje a um retrocesso social e económico, a um significativo aumento da corrupção e ao desaparecimento da classe média e às desigualdades sociais: os pobres mais pobres e os ricos mais ricos. O país entrou em bancarrota devido ao despesismo e má gestão dos recursos financeiros de sucessivos governos, devido a políticas sociais erradas com base em investimentos megalómanos, aos agiotas e à especulação financeira, que levaram o país à ruína! Hoje, vive-se melhor em Portugal, mas o actual estado da nossa democracia é preocupante; os sucessivos governos não merecem mais confiança: prometem uma coisa e fazem outra! Quase ninguém confia nos actuais políticos! Quando há eleições a abstenção é cada vez maior. Os jovens estão alienados da política. Assim, os propósitos de Abril estão cada vez mais longe de serem alcançados! Não conheço outro regime político melhor do que a Democracia, mas a actual, afasta-se cada vez mais do ideais de Abril!

Base Francesa nas Flores

     Foi com imenso gosto e até alguma nostalgia que assisti à visualização dos vídeos "Opération Hortensia" na Biblioteca Pública...